Do quiabo ao dendê, caruru baiano é marco do sincretismo na gastronomia

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É com cebola, camarão seco, castanha e amendoim, gengibre, sal, azeite de dendê e quiabo que se faz um bom caruru. O preparo é mais simples do que a escolha do quiabo. O ideal é que ele não seja pequeno para não correr o risco ficar com gosto de sabão. Grande também não é recomendado por estar maduro demais. O segredo é o quiabo em tamanho médio e e com uma cor que chame atenção.
Todo esse cuidado é recomendado pela instrutora de gastronomia Jacqueline Bispo. "Tem que pegar por inteiro, sentir na mão, olhar a cor dele. O quiabo é importantíssimo", apontou. Feito com ingredientes africanos e nativos, o caruru é a principal comida servida na Bahia no dia de São Cosme e Damião, santos gêmeos que são celebrados neste domingo (27) e estão associados aos orixás Ibejis no candomblé. Por isso, o G1 conta a história do alimento e dá a dica de como preparar essa delícia em casa.O caruru não é conhecido em todo lugar pela receita do picadinho de quiabo e dendê famoso da Bahia. O termo tem diferentes referências e uma das mais antigas dá conta de um prato feito à base de folhas comestíveis trituradas como vinagreira, azedinha, bredo e outras - uma espécie de guisado (ou ensopado) com azeite de oliva e alho -, que era comum em países como Espanha e Portugal, segundo o historiador e professor de gastronomia Elmo Alves.
A versão baiana tem relação direta com o sincretismo religioso afro-brasileiro. “O nosso caruru, feito com quiabo, seria o Amalá dentro da prática religiosa africana. O quiabo é africano e foi trazido pelos portugueses, que tinham de um espírito ecumênico, gostavam de outras culturas alimentares e, ao mesmo tempo, tinham grande prática de comércio de especiarias e, assim, promoviam essas trocas culturais”, explicou.

Outro produto que atravessou o Atlântico foi o dendezeiro - na época, como planta ornamental e moeda de troca de escravos. Dele, os povos africanos fabricavam óleo para acender lamparina e também para preparo de alguns alimentos. Mas o uso massivo na gastronomia aconteceu já na Bahia, contou Elmo Alves. "A planta entrou como forma absurdamente forte e ímpar que é impossível dissociar a comida baiana da comida com dendê. É o sangue, a alma da nossa comida baiana", apontou.
É possível encontrar pratos que usem juntos o quiabo e o dendê na África, mas nada igual à concepção típica da Bahia, que surgiu das tradições do recôncavo dentre as chamadas "comida de santo". "Essa religiosidade de matriz africana, o uso de dendê da culinária, a comida de santo, é típica de todo recôncavo. Veio do côncavo que circunda a Baía de Todos-os-Santos, porque foram onde se deram os grandes canaviais e plantios de açúcar. O caruru legítimo é o caruru baiano. Em várias regiões, como Pará e Maranhão, têm a prática. Mas o caruru de raiz é tipicamente nosso, porque está ligado à religiosidade, à oferenda religiosa”, comentou.

O caruru de São Cosme e Damião

Mas caruru não dá nome apenas à receita específica. É também como se chama a composição das diferentes preparações da mesa do cobiçado “caruru” de São Cosme e Damião. Segundo o historiador, a mesa do caruru faz parte da tradição de agradar entidades africanas e cada prato simboliza um orixá. O caruru, prato principal, conta, é apreciado não só pelos Ibejis, os Êres, mas também por Xangô e Iansã.
“Vai ter uma comida, no mínimo, para um orixá. A farofa de Exu, o feijão fradinho de Oxum, a pipoca de Obaluaê e até o milho branco de Oxalá. A quantidade de iguaria é relativa. Cada pessoa coloca as iguarias da tradição familiar ou da família de santo. Se nós fôssemos enumerar, daria mais de 20. Tem orixá que não tem só uma comida”, informou.E, para todos eles, é a quantidade de quiabo que mede o tamanho do caruru (prato) e dos demais acompanhamentos, que incluem arroz branco, vatapá, xinxim de galinha, farofa, feijão fradinho, banana da terra frita, pipoca - algumas famílias também botam feijão preto, feijão branco e inhame. Acarajés e abarás, muitas vezes na versão pequena, também é encontrado. “Como tudo nessa cultura de matriz afro é baseado na oferta, na oferenda da comida, a celebração desses orixás meninos não poderia ser diferente”, afirmou.
Apesar da raiz histórica ligada ao candomblé, setembro é mês de comer caruru na Bahia independentemente se a família é de santo. "Aconteceu uma transversalidade. Não necessariamente quem ofereça seja ligada à religião de matriz africana. Entrou no seio cultural e na nossa identidade. Tem muitas pessoas que se sente motivadas e estimuladas seja por relação afetiva, sincrética, ao acaso, por demonstração de fé. O ato de oferecer comida é ato de congraçamento, é doar-se, festejar. Independente de religião, todos nós temos memória de caruru".

Do G1 BA

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